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terça-feira, 22 de março de 2011

Violência e Paixão (da "Contracampo", Revista de Cinema)

O título original, "Conversation Peace", mais uma vez parece contraditório com a "trancriação" portugo-brasílica do título.
É o penútlimo trabalho de Luchino Visconti.
Burt Lancaster e Silvana Mangano são magníficos!

Após os esforços para a realização de Ludwig – um filme monumental em todos os sentidos – e com a saúde seriamente debilitada após um AVC que lhe confinou a uma cadeira de rodas, Luchino Visconti vislumbra o aproximar-se do fim da vida e procura fazer de seu filme seguinte, se não um acerto de contas, ao menos uma reflexão sobre aspectos do seu tempo. Então, como vinha se tornando cada vez mais raro em sua obra, Visconti trabalha com um roteiro original – escrito com os parceiros habituais Suso Cecchi D’Amico e Enrico Medioli – e de ação contemporânea. Retoma também a colaboração com Burt Lancaster para realizar Violência e Paixão, um filme de cunho mais intimista (ao menos para os padrões Visconti).

Lancaster incorpora um intelectual aposentado – a quem o filme se refere apenas como O Professor – que vive isolado em seu apartamento, cuidando de sua coleção de pinturas. Vale ressaltar que o título em inglês (Conversation Piece) se refere aos quadros de interesse do Professor, pinturas do século XVIII que retratam cenas da intimidade de famílias nobres e burguesas. Visconti se concentra, portanto, no retrato da intimidade do Professor quando este se vê praticamente forçado a alugar um apartamento vazio também de sua propriedade, localizado no andar superior à sua residência. Seus inquilinos são uma família de posses e origem nobre, mas, aos olhos do Professor, de hábitos vulgares e decadentes. O contato com essa família irá transtornar de maneira extrema a existência pacata e reclusa do protagonista. Visconti deixa esse choque bem claro ao iniciar o filme com o som de um estrondo.

Se não podemos considerar sob todos os aspectos o Professor como um alter-ego de Visconti, uma vez que este declaradamente afirmou não compartilhar de seu caráter excessivamente reservado e quase misantropo, é certo que o cineasta se utiliza dele para fazer uma reflexão sobre o papel, não somente do intelectual, mas também do cidadão, perante a sociedade e o mundo que o cercam. Em diversos aspectos, o Professor se aproxima do Príncipe Salina, também vivido por Burt Lancaster em O Leopardo, mas se o Príncipe tenta, mesmo com muito sacrifício, compreender e se adaptar às transformações de seu tempo, o Professor a princípio isola-se e se omite. Mas Visconti certamente partilha com o Professor o estranhamento de um homem idoso e erudito perante um mundo que sofrera intensa transformação – estamos no início da década de 1970 – e com o qual seus valores certamente não mais se identificam. O que Visconti discorda, com relação ao Professor, é o fato dele utilizar essa não-identificação como um motivo para isolamento e omissão em relação ao mundo contemporâneo, já que o Professor tenta justificar seu desencanto. "Os intelectuais da minha geração tentam achar um equilíbrio entre política e moral; e essa é uma procura pelo impossível", ele diz. Visconti, ao menos, não parece ter desistido dessa procura mesmo no fim da vida.

Se não chega a ser o tema principal do filme, não podemos deixar de considerar em Violência e Paixão a questão da solidão. Mesmo incomodado pelo comportamento do grupo, o Professor não deixa de projetar na Marquesa (Silvana Mangano), sua filha Lietta (Claudia Marsani), seu cunhado (Stefano Patrizi) e principalmente seu jovem amante Konrad (Helmut Berger) uma afeição e vislumbrá-los como o núcleo familiar que falhara em construir ao longo da vida. Na ligação entre o Professor e Konrad, misto de afeto paternal e desejo platônico, ficam patentes traços da relação entre Visconti e o ator Helmut Berger, seu companheiro desde fins dos anos 60. E durante o jantar e a subseqüente conversa ao café, Visconti concretiza em seu filme, de forma ao mesmo tempo carinhosa e cruel, o retrato de um grupo familiar sugerido pelo título original. A este grupo familiar integra-se perfeitamente a cenografia, nunca gratuita, como é característica do diretor, aqui restrita ao apartamento do Professor, pródigo em livros e obras de arte, e ao imóvel alugado – sempre em transformação – finalmente apresentado como um exemplo de vulgaridade.

Passa também por Violência e Paixão a crítica – recorrente na obra de Visconti – à corrupção e à decadência das classes dominantes, principalmente na figura da Marquesa e seu marido, um rico industrial que, segundo ela, "jamais leu um livro na vida, mas tem mania de manter salas cheias de livros". É a partir desse marido, que não aparece em cena, mas tem papel preponderante na conclusão da trama, que Visconti aproveita para se situar – e a seu filme – politicamente perante a sociedade italiana da época, denunciando a ascensão de uma política radical de direita, que beirava uma espécie de neofascismo. Ao defrontar-se com esse quadro, não sem conseqüências trágicas, o Professor se vê – assim como o diretor à época – com a saúde abalada. Mas se a personagem se deixa levar e parece aguardar a morte inexorável de forma passiva, numa seqüência final banhada em rara beleza, assim como todo o filme, Visconti, ao contrário, jamais deixa de seguir em frente e dar incansável prosseguimento a seu trabalho.

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