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quinta-feira, 27 de maio de 2021

Meu último dia

Quando este último dia chegar, os inventários e testamentos deveriam estar prontos. 
Pode ser susto, bala ou vício, aneurisma, o câncer, pode ser enfarto ou avc, pode ser o ônibus desgovernado, o acidente automobilístico. Não importa. 
Há dois herdeiros de fato e direito e familiares e pessoas amigas ou credoras a atender nas sucessões.
As coisas de guardar, as materiais, isso se virem como possam.
Vamos lá.
Primeiro um inventário das coisas falidas. 
Um casamento, uma carreira, uma paternidade, uma humanidade.
Não, nem é pessimismo auto comiserativo nem nada. 
É só para começar a lista de erros, de pedidos de perdão, de reconciliações possíveis ou não.
As vivências vividas e a herança de todos outros que caíram, fossem como aroeiras que tombam mas não vergam, como paus podres e secos, mas que foram até o final (vós e vôs, tios e tias, amigos, parentes e conhecidos que foram) ou que ainda aí estão, principalmente o irmão que enfrenta um dilema no que poderia ser dito ainda o "auge", essas vidas idas e por ir, me trazem aqui contrito e envergonhado.
Sei que andei errado.
Há um dragão da maldade a combater, há um genocida, há uma falta de crença no sentido positivo da história e da humanidade a desfazer. Há um país que sonhamos construir. Há conquistas passadas a refazer, a reconstruir.
O resto era o meu chororô, minha falta de bossas novas e frevos e jazzes, meu Thanatos vencendo Eros. Minha derrota moral a me levar a maltratar o corpo esperando lá do fundo que a morte se desse não por meios ditos violentos (mas igualmente deletérios), mas por um abcesso mal curado ou uma síncope repentina, passivamente, uma carne velha apodrecendo sobre uma cama com cheiro de hospital e meias e roupas velhas, sujas e mal lavadas.
A covardia da gente é uma chaga. Pensa em Alexandre o Grande, em Ogum, num gladiador, num Ijucapirama, na sina de guerreiros que fomos, no arado torto, nas fazendas e onças grandes e jacarés açus que já enfrentamos. Busca num sangue mítico o que te aprouver, mas lute.
Que fique bem claro, meu excesso de lusitanismo e iberismo só não me faz passar mais raiva de mim e ter autodesprezo porque também sou (as proporções, os mais e menos já pouco importam) o preto, o índio, o judeu, o árabe, o romano, o germânico e o eslavo. 
Respeitem meus cabelos, meu nariz e minha bunda. Por esses olhos que a terra há de comer.
Então aqui abrem se as folhas de ata de novo do escrivão R.
Aos vinte e sete dias do mes de maio do ano da graça de nosso senhor Jesus Cristo de 2021, 3o de Bolsonaro, vinha à minha presença esse bosta, esse nada, passar, ou tentar passar, a régua numa existência pífia, deveres e haveres, passivos e ativos.
Antes disso tinha que alertar os filhos que, se o mel coado era pouco, a esperança pregressa tinha sido gigantesca. Um pai pare seus filhos para seus filhos lhe parirem. 
Em bons momentos (como esse em que já foram de caligrafia e tintas e agora é em computador mais ou menos, teclado desgastado, tevê não nova servindo de tela para aumentar o tamanho da fonte, já que miopia e a presbiopia te consomem a acuidade já de longe, com algum astigmatismo e um pouquinho de estrabismo), nesses momentos eu era o ser que se julgava imortal, que achava que esse blog ia ser lido (e ao mesmo tempo, que fosse uma mensagem na garrafa, que o fundo do mar a levasse para nunca ser encontrada, sem nunca ser entendida pelos peixes e outros seres frutos do mar.
Afinal a ideia da imortalidade nos era cara, muito humana. Judeus, cristão, muçulmanos, kardecistas, umbandistas, todos religiosos estavam aí para vender céus e infernos e purgatórios e karmas e dharmas e aruandas e umbrais e outros lugares para onde iam almas já como que sem corpo, mas muito conscientes e, se desse certo, já liberadas de culpas e apegos. Seres de luz, dizem.
Não. Não quero ter ilusões. Só quero passar vivo pela pandemia, pela ditadura que se estabelece. Preciso cantar e dançar para dizer que há sim um novo dia, uma nova esperança. Nem que seja para um dia um esperançoso tomar a nave do Elon Musk e ir fuder com outro lugar depois de termos com a santa burrice arrogante estragado a Terra.
Quero dançar com você. Já vem as quatro da matina. Vou ter sono de dia. Mas a mente acelerada não concilia o bom sono. Crise de ansiedade braba, pânico eu tenho conseguido evitar. Rivotril pra que?
Medo, muito medo de morrer. E medo de viver. De pegar covid, de montar no carro, de atravessar a rua, de subir a ladeira e descer pro centro, a pé, de bicicleta, de ir no Vale, voltar à cidade da infância, ir na praia, pegar um barco, um avião, rever Cubatão, rever a Santos da minha mãe. 
E ao mesmo tempo, ganas de cuidar da fazenda, das casas de aluguel, arrumar os armários, comprar novas roupas, escutar novos "discos", escutar velhos discos, conhecer novos museus, voltar nos conhecidos, arrumar uma namorada legal.
Quem tem plano tem vida. Quem tem vida vai morrer. 
E aí, na hora de ir encontrar Deus ou o nada, já os planos não importam mais. 
O que foi foi. Que aqui fique. Precisamos aprender a ter alegrias na velhice e morrer em paz.