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sexta-feira, 19 de março de 2010

Hebdomadário página 32 1986 Exéquias de um canário

Talvez tenha sido a noite fria, mas cá para mim foi o seu "modus vivendi" que o matou. Repasso em instantes os lances dessa curta existência aprisionada e quantas vezes hesitei em libertá-lo pensando que talvez ele não conseguisse sobreviver em ambientes "reais" de competição pelo alimento e segurança.
Cheguei há pouco em casa e pensei que como sempre ele estaria encolhido sob aspenas, dormindo. às vezes ele acordava e outras nem se mexia e eu gostava de ser discreto o suficiente para não importuná-lo. Nos últimos tempos eu tinha me afastado dele, esquecia de alimentá-lo e limpar sua morada.
Afinal deparei com sua cabeça pendida do vão das grades. À princípio não gostei da idéia de tocá-lo e talvez constatar a sua morte. Alisei a cabeça por fora com o dedo e percebi a inércia que se apossou do seu corpo. Tive então que abrir a portinha e colhê-lo. Percebi que sem vida ele parece pesar menos ainda que umas poucas plumas. Lembro-me de tê-lo apanhado quando vivo e a impressão era de haver muito mais massa, porque havia movimento. Agora ele estava reduzido a uns poucos gramas. Os olhos murchos e o corpo coberto de formigas. Tudo deve ter ocorrido recentemente, pois ainda não há rigidez cadavérica, se é que isso ocorre em canarinhos, tão pequenos os ossinhos e músculos. Seus pezinhos, cascudos da sujeira do poleiro, estão quebradiços, com uma unha que quase se desprende do dedo mais frontal e longo do pé esquerdo.
Penso que foi breve demais sua passagem. Não foi o suficiente para ele aprender a cantar, devido à sua falta de companhia, só lhe foi possível imitar os pios pobres dos pardais que vinham à sua presença na cata das migalhas das suas refeições. Muito menos tempo houve para definir qual era o seu sexo e poder arrumar-lhe m parceiro (ou parceira?).
no fundo nao sei se gostaria de reproduzir a geração dos que vivem dessa forma. Fico consternado porém com uma morte sem sentido.
Não o abandono, pois não sei que fim vou dar ao seu cadáver. Quero lhe prestar as honras fúnebres, enterá-lo no jardim. homenagear os da sua raça, os que cantam e nos alegram, os que vivem livres, as cores de suas plumagens, o símbolo de paz que inconfundivelmente se associam com a fragilidade e a beleza, com sua integração ao meio, já que eles não colhem nem ceifam. Quero chorar pelos exemplares atuais que estão condenados à artificialidade, prantear o fim da liberdade deles que moreu junto com a minha, com a morte das matas, dos índios, dos "selvagens".
Quero sentir a minha vida através da falta da dele. Seu corpinho estendido sobre o jornal em cima da minha escrivaninha parece avançar para a perda de suas cores. Só restam tons de amarelo sem vida e uma ou outra mancha mais avermelhada, reminiscências dos carotenos dos pimentões maduros e das beterrabas que lhe dei.
Sinto-me inútil, impotente para recobrar-lhe os sentidos e mover-lhe o sangue. Uma formiga solitária vagueia pelo meio de suas penas.
Estou com pena de ser como os canários, de viver em gaiolas, de ter que aceitar a ração incondicionalmente, de ter a vida efêmera e sem grandes alegrias. A vida me foge como a dele, inconteste e inexplicavelmente. Estou feliz, no entanto, de poder cantar, de tomar sol, de "voar" mesmo que de um puleiro a outro. A vida se adequa às circunstâncias e a libido se manifesta na adversidade. Criamos o mundo dos sonhos e do pensamento onde a mata é virgem e os pássaros ainda cantam em liberdade, ou melhor, onde os pássaros (que nunca viram o mundo de além das das grades das gaiolas) se libertam de todos seres que lhes oprimem e impõem barreiras ao vôo.
Gorjeio numa manhã messiânica, sou homem no tempo que não houve e não haverá, se bem que minha esperança não termina com a morte do corpo desse animal. Sobrevive em outros, herdeiros da mesma idéia que recebi.
Aqui perto jaz um canário insepulto e assim ele não ficará. Terá sua tumba rasa com meio palmo de terra sem lápide e sem memória. Meu sonho, porém, terá outro fim, dissociar-se-á do meu corpo que seguirá os passos trilhados pelo corpo do canário. Meu sonho não terá fim, meu sonho é eterno como os sonhos do homem.
Meu sonho é um pássaro sem alçapão ou gaiola, sem pedrada ou estilingue. Meu sonho é um homem sem patrão ou endereço, sem guerra ou exploração. Meu sonho é o casal de canários e seu ovo, o primeiro de uma geração que está por vri, com o canto mais lindo e a plumagem sem concorrente em quantidade e intensidade de tons. É o canário que sou e o homem que vive no canário, que morreu.
Sou o sonho de um pásaro preso que morreu esta noite de causas não determinadas numa gaiola ignóbil.

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