Postagem em destaque

"Concreto"

Pedra, barro, massa     Mão, calo, amassa! Levanta parede  No ar  D a hora Que se levante! Mora dentro     F ora   Vi...

terça-feira, 23 de julho de 2013

Neblina na Anchieta

O relógio do ônibus marcava 7:24 e 16 oC, mas com certeza estava atrasado e a temperatura não era tão alta. Conferi: 9 minutos de atraso no relógio e pelo menos 6 oC de defasagem no termômetro...Já fazia quase meia hora que não nos movíamos. À direita, pelo vidro embaçado pela condensação, eu podia ver a longa fila à nossa frente. O motor do ônibus não saía há tempo de sua marcha lenta e com isso as luzes de leitura e o aquecimento não se desligavam, para nosso conforto e até mesmo para nossa sobrevivência. Seria difícil suportar o frio úmido diretamente exposto a ele. Os 16 oC do relógio eram uma mentira grosseira. Era inverno tropical, mas era finalmente o inverno!
Ontem tinham sido quase duas horas de atraso, parado. Hoje quantas seriam? Eu não tinha problemas fisiológicos: nem fome, nem sede, nem sono, nenhuma urgência urinária ou intestinal. Restava aguardar, pacientemente. Como quase sempre, os colegas aproveitavam para dormir. Para mim o sono se parecia com a morte e minha urgência de viver me impedia de continuar dormindo. Lera varais páginas e quase acabara “As consolações da Filosofia” de Allain de Botton. Ensaiara ligar o smartphone na internet, mas ou não havia sinal ou eu cometera alguma burrice desligando o wifi ou outra funcionalidade, o que fizera para preservar por mais tempo a carga da bateria e impedir notificações instantâneas do facebook.
Tive que me aprumar e abaixar o pulôver, que havia subido um pouco descobrindo a gordura da cintura nas costas e de onde vinha um contato gélido com a superfície fria da lateral do ônibus. Um certo tédio começava a me perturbar.
Por alguma razão me ocorreu que o Papa estava no Brasil. A euforia religiosa dos católicos com a Jornada Mundial da Juventude me era bastante indiferente, eu me centrava então na neblina espessa que agora tinha engolfado os veículos, quase todos de porte pesado, e as curvas da estrada e só deixava de fora, visíveis, meu ônibus e dois caminhões: o da frente, uma “cegonha” lotada de carros da Chevrolet e o de trás, um vetusto e, hoje, pequeno e já carcomido Mercedes Bens 1113 que um dia tinha sido azul “calcinha”.
À minha frente a Patrícia acordou, ou assim pensei, e esticou-se para tentar entender o que se passava. 7:46, 18 oC; o frio seria de 10 ou 12 oC, mais ainda pela chuva que vinha, o vento da Serra...Edivaldo, o motorista, abriu a porta de seu compartimento, alguém fazia perguntas ou comentários provavelmente inúteis; estávamos inexoravelmente presos até que uma força externa maior nos libertasse daquele imobilismo. Nada havia a ser feito, apenas a paciente espera estava em nossas mãos.
Daquela pouca atividade resultara o acendimento das três telas de televisão. Sem sinal. Telas azuis com um retangulozinho verde que ia aos pulinhos atravessando a diagonal das telas: NO SIGNAL!
O motor do ônibus às vezes parecia que acelerava, mas devia ser só o cansaço auditivo que tentava fugir da monotonia da vibração em freqüência muito constante, enganando os sentidos. Atrás de mim o colega trocava os toques de seu celular: assobios ridículos e rifs de guitarra distorcida, sonzinhos metálicos, tiquetaques digitais de uma nova era sem os barulhos analógicos como os dos despertadores “panelões” e das máquinas de escrever. 7:58.
Presos na Serra do Mar! Acidente? Manifestação? Reflexo da obra mal programada? Excesso de veículos? Paralisação sem causa? Essa última hipótese era impossível! Tudo tinha que ter uma causa, mesmo que desconhecida por todos! Uma das duas artérias que ligavam a maior cidade com o maior porto da América do Sul não paravam por horas numa terça feira de manhã por nada. E de novo o assobio ridículo do parelho celular do colega de trás! 8:02
Visgo de jaca, cola, lama, o encalhe começava a me perturbar. Entalados, agarrados, como se o asfalto frio e duro tivesse derretido e colado os pneus entre os pedriscos num chiclete preto que serpenteava pela encosta da mata branca de neblina.
Movimento: duas motos com sirenes passam se esgueirando entre os veículos. Dois homens com capas de náilon verde limão. Esperança de que alguém alcançasse o fulcro, a origem última dos fatos, de que, além das motos, guindastes em helicópteros atingissem o umbigo do nó, o fulcro do problema e, arrastando uma suposta carreta quebrada, nos libertassem...
Nada, só esperança vã. 8:07! 8:08! Volto sem vontade às “Consolações”. Não adianta! Ao lado a Vivi se vira um pouco e tenta se cobrir melhor com o cobertorzinho curto, que me parece tão aconchegante. 8:15. Já devíamos ter chegado! A neblina não se mexe, nem pensa em se dissipar! O ônibus não se mexe! Só o grafite da lapiseira se mexe em minha mão, preenchendo essas mal traçadas linhas por onde insisto em me mover como se fosse o meu desejo para esse coletivo!
Já estamos aqui há mais de uma hora? Com certeza! 8:18. A Pat comunica ao telefone com algum colega, entre desesperançosa e conformada, que talvez só chegue em CCB para o almoço... A neblina não se mexe. Os veículos não se mexem. As pessoas começam a se mexer, tossem, se ajeitam, bocejam, chupam os narizes que escorrem, pigarreiam. Atrás de nós um motor ronca forte como se fosse partir, mas resfolega e para. 8:22, 19 oC (quem dera!). A única coisa que vai para frente são os números no display do relógio: 8:23!
Os freios se soltam, as marchas se engatam: estamos andando! Viva!
Nem 100 metros...Motores roncam forte, mas é só uma pequena convulsão que reotrna ao imobilismo. Tudo para logo à frente de novo! 8:25.
Ao meu lado, agora, outro Mercedes Benz, branco e um pouco menos vetusto, 1314, rugindo como se fosse voar, mas se acalma, não vai sair do lugar por enquanto. As gotas no lado de fora do vidro são de chuva e me fazem lembrar que hoje é terça, que vim de moto do Itaim Bibi para a Conceição. Pelo menos hoje tomei a sábia providência de colocar a capa preta e grossa “de motoboy” e que a deixei secando sobre a moto no estacionamento da Avenida do Café. Enfrentei, agasalhado por ela, a garoa fria na madrugada escura, nesse dia que não quer nascer, tudo envolto na luz baça do leite grosso dessa neblina espessa da Anchieta. 8:30. Meu consolo é ser pago por toda essa imobilidade inútil! Pior se eu estivesse gastando meus recursos parcos recursos nessa pasmaceira!
É claro que era um desperdício que não me agradava, que todos estávamos sendo prejudicados por mais um dia de congestionamento na Serra do Mar. Mas meu empregador saía mais prejudicado que eu, e não era minha culpa; aquilo de certa forma aliviava a culpa ancestral e a sensação de perda. Eu perdia “menos”, meu “taxímetro” estava ligado, eu era remunerado por estar ali! Fazia uma conta besta de quantos reais me pagavam por minuto, tinha mais dó da Vale e menos de mim, mas tinha dó de mim e do Brasil por tudo aquilo...
Nossa competitividade não melhorava com aquela falta de mobilidade. 8:37, 19 oC; 8:54, 18 oC, finalmente a neblina se dispersa um pouquinho e estamos em movimento. Talvez uns cinco ou dez quilômetros adiante e uma nova parada, mas ainda não é total...ao meu lado desfilam parados caminhões com contêineres, refrigerantes Dolly, frangos Rigor, baús com plataformas pneumáticas, estofados Criativa de Jaci (não sabia que meu estado tinha essa cidade), etc. O desfile cotidiano da logística intermodal! Casas Bahia, máquina de terraplenagem Catterpilar em caminhão prancha, líquidos corrosivos na cisterna de aço inox da Sancap, um recorte da vida do porto que se avizinha, o eterno cais. Lembro do Milton, “Para quem quer se soltar, invento o cais”. Ou do Macalé com Capinan, Movimento dos barcos,
Estou cansado e você também
Vou sair sem abrir a porta
E não voltar nunca mais
Desculpe a paz que eu lhe roubei
E o futuro esperado que eu não dei
É impossível levar um barco sem temporais
E suportar a vida como um momento além do cais
Que passa ao largo do nosso corpo

Não quero ficar dando adeus
As coisas passando, eu quero
É passar com elas, eu quero
E não deixar nada mais
Do que as cinzas de um cigarro
E a marca de um abraço no seu corpo

Não, não sou eu quem vai ficar no porto
Chorando, não
Lamentando o eterno movimento
Movimento dos barcos, movimento

E vem outra cegonha, com Hondas, Fits em cima e Civics embaixo; 9:02, 19 oC; 9:41, 20 oC, finalmente entramos na cota, passamos a fábrica de papel e deixamos os colegas em CCB, na Bernardo Geisel Filho, avançamos lentamente pela Cônego Rangoni em direção à Plínio de Queiroz, a Piaçaguera...A poças na obra do acostamento refletiam um céu de chumbo. Meu pescoço doía num torcicolo, meus pés pareciam que tinham, invés de meias grossas e botinas, sido postos em tinas com gelo. Pedras remexidas, lama e lixo faziam com ferros retorcidos um quadro feio emoldurado por um corguinho. Placas anunciavam o pedágio a se pagar mais à frente, mas ele parecia que nunca ia chegar. 9:47. Duas horas e meia “perdidas” na leitura e na escrita.
Sonhava uma xícara fumegante de um chocolate espesso e de qualidade, um misto quente, coisas que me reconfortassem, vontade de urinar, vontade que um anjo benévolo me alçasse dali para uma praia cálida e paradisíaca, como tantas que existiam não longe dali, em outros dias do ano.
9:51. 20 oC. Não cheguei na fábrica ainda, mas a vejo. Antevejo as agruras do dia, o atraso, os acúmulos de tarefas indesejadas...Câmbio e desligo!

Nenhum comentário: