Eu, Bolívar e o espião que fumava Marlboro
por Luiz Carlos Azenha
Se alguém pegasse o menos sofisticado dos manuais do politicamente correto e aplicasse em mim eu estaria frito. Não é por maldade, juro. É por ignorância. Em primeiro lugar, nasci em Bauru. Não quero aqui criar a categoria das justificativas geográficas, mas repito o bordão que ouvi aplicado em outras circunstâncias: você pode até deixar Bauru, mas Bauru nunca, jamais vai te deixar. Podemos falar muitas coisas boas sobre Bauru. É a capital da Terra Branca. Era. Até que um dia descobriram que isso não significava muita coisa. E mudaram. Mudaram para… Cidade Sem Limites!
Bauru, infelizmente, ficou espremida numa história que poderia render muito à sua fama. Pelé nasceu em Três Corações, Minas Gerais. E ficou famoso jogando bola no Santos FC, em Santos. Mas Pelé começou a jogar futebol em Bauru. Mais que isso, passou toda a infância em Bauru. Mas isso não rende muito numa época marcada pelos 140 caracteres do twitter. Pelé nasceu em Bauru soaria melhor. Pelé fez mil gols pelo BAC soaria melhor ainda. Pelé começou a jogar futebol em Bauru não tem a mesma pegada. E daí?, diriam nossos eternos rivais, os marilienses. Além disso, os dirigentes do Bauru Atlético Clube venderam o terreno onde ficava o clube para a construção de um shopping center. O lugar exato onde o Pelé começou a jogar — e onde também fez uma de suas muitas despedidas, que cobri como repórter para um jornal local — fica hoje entre o setor de pneus e o de eletrodomésticos do shopping.
“Foi ali que Pelé jogou”, eu apontei outro dia, quando visitei o lugar com um conterrâneo. Delicadamente, o segurança do shopping pediu que eu me retirasse. Achou que eu estivesse com algum problema.
Portanto, lembremos apenas do mínimo necessário sobre o Pelé para valorizar minha cidade de origem. Eu, Azenha, frequentei o clube em que o Pelé nasceu para o futebol. Tomei o trem da Noroeste na estação diante da qual ele, Pelé, vendeu amendoim e engraxou sapatos.
Bauru também ficou famosa por causa de um sanduíche. Mas a relação entre o sanduíche e a cidade é, igualmente, vaga. O sanduíche Bauru foi inventado em um bar de São Paulo, o Ponto Chic, e ganhou o nome por causa de um freguês cujo apelido era “Bauru”.
Ou seja, o Pelé e o sanduíche jamais vão render a Bauru um museu. Um museu onde a gente diria, com orgulho: ambos nasceram em Bauru!
Há um terceiro fato que talvez ajude a promover Bauru. É a terra de muitos jornalistas. Que eu me lembre assim, rapidamente, é a terra do Roberto Pinto. Do Arnaldo Duran. Do Maringoni e do Gilson Ribeiro. Do Luiz Malavolta. Do Gerson de Souza. Da Kitty Balieiro. Do Leonardo de Brito e do Benedito Requena. Do Amauri Soares. Do Sergio Lhamas. Do Fábio Sormani. Do Nilson (Costa, Avante, etc.). Talvez eu possa argumentar que há alguma coisa na água de Bauru que nos ajude. Ainda assim, não é exatamente uma imagem de sofisticação, que é onde quero chegar.
Nem Pelé, nem sanduíche, nem fonte do saber.
Se ainda fossem o Platini, o croissant, o Le Monde (com sotaque do Renato Machado) e a Perrier…
Mas, não. Em Bauru houve a Água Santa Teresinha. Foi de meu pai, um empresário comunista. A Água Santa Teresinha vinha em garrafões de cinco litros. Os garrafões frequentemente quebravam nos caminhões de entrega. Até que seu Azenha descobriu que repor os garrafões custava mais caro que a água contida neles. Empresário, comunista e, esqueci de dizer, português.
Não me faltaram os livros. Estes eram abundantes em casa, desde muito cedo. Cinco mil, fora os que o Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS) levava para cumprir a cota mensal. Como os comunistas eram raros em Bauru, a frequencia dos meganhas na rua Conselheiro Antonio Prado, entre outros endereços, era considerável. Finda uma visita, seo Azenha já preparava os livros que seriam levados na próxima. Hora de deslocar os que tinham encadernação vermelha para a fileira da frente nas estantes. Sim, ele era português, não brasileiro.
Não me faltou educação. Sempre estudei em escolas muito boas, inclusive no espetacular Instituto de Educação Ernesto Monte, do tempo em que os ricos se misturavam com a gente nas escolas públicas. Muito mais tarde, na Universidade de São Paulo.
Não me faltou frequencia a lugares sofisticados. Nem viagens. Numa delas, à Austrália, fiquei hospedado em um hotel tão chique que um colega que quebrou um prato passou uma semana na cozinha prestando serviço. Mas gostoso mesmo foi ficar no Andra Hotel, de Andradina, e sair sábado à noite para ouvir a banda cover do Abba vestindo calça boca-de-sino. Ou no Hotel Rossiya, em Moscou, sob a guarda, no corredor de nosso andar, de uma babushka que controlava um sifão de água mineral e de um soldado do Exército Vermelho louco para filar um Marlboro e folhear a Playboy.
Bem melhor que a espelunca de Bagdá onde só passava o Saddam Hussein na televisão, noite e dia. O Sherman Costa, cinegrafista, conseguiu comprar cerveja em Bagdá apesar do duplo policiamento sobre nós — dos espias do governo que nos acompanhavam e da polícia de costumes — e bebíamos cerveja quente, de madrugada, vendo os discursos de Saddam e os videoclips de louvação ao Grande Pai. Ser politicamente incorreto em São Paulo é moleza, quero ver em Bagdá…
Apesar disso — dos livros, das escolas, das viagens — sinto-me cada vez mais constrangido diante do que leio na internet, especialmente quando surgem polêmicas.
Quanta certeza, meu Deus! São homens perfeitos. Mulheres acima de qualquer suspeita. Gente que já leu tudo recomendando leitura aos outros. Militantes digitais conferindo cada palavra, cada sentença, cada post, em busca de erros, falhas e contradições — conferindo o cumprimento de cada norma contra um manual imaginário de moral e bons costumes.
Eu sou muita mais feminista que você! O que você escreveu é um lapso lacaniano! Faltou incluir um blogueiro verticalmente prejudicado na entrevista do Lula!
Leitores exigem desculpas! Leitores prometem nunca mais voltar!
Especialmente nesses tempos de 140 caracteres, as polêmicas fazem aflorar afirmações certeiras, sentenças inapeláveis, declarações definitivas.
Sinto-me cercado ao mesmo tempo pelos homens do DEOPS, do exército Vermelho e da polícia do Saddam. A política e a de costumes.
Sinto-me, francamente, um Gordini diante de uma frenética inspeção veicular digital.
Minha primeira reação é correr para conferir se tenho estepe, extintor e a bolsinha dos primeiros socorros.
E preparar uma justificativa geográfica para minhas hesitações, incertezas, incapacidades, erros — em resumo, para a minha rude ignorância.
Gente, a culpa é de Bauru!
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