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terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O garoto que não tomava no cu

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Escrito por Ana Paula Seixlack
Ter, 28 de Outubro de 2008 17:34

Na nova Brasília, em meados dos anos oitenta, muitas coisas ilegais aconteciam para todo mundo, menos para Renato. Garotos resgatavam o entusiasmo dos anos cinqüenta com roupas de couro e topetes Rockabilly. Para ser adolescente e não morrer de tédio na cidade era preciso usar a imaginação. Contudo Renato ainda estava na fase de jogar Atari e brincar com seus Comandos em Ação. Contava apenas com onze anos e via o mundo de gente grande apenas pela fechadura da porta de seus irmãos mais velhos.
Uma vez espionou uma orgia entre garotas e garotos e até o final de sua pré-adolescência, o garoto nunca mais fora o mesmo. Sonhava em ter uma garota na sua frente e um rapaz atrás. Mas aquele era só o início. Sua personalidade sequer estava formada.
Seu ídolo-mor era o Leo Jaime. A princípio gostava apenas da música, mas quando menos esperava, a voz suave que saía de dentro da vitrola não o envolvia mais e se flagrava reparando apenas nas pernas do músico no encarte do vinil.
Quando o tempo passou demais, Renato já não pensava mais no cenário punk rock que tanto o empolgara quando jovem. Nem em orgias, nem em farras homéricas. Tudo tinha mudado! Ele beirava os trinta anos e cursava sua segunda faculdade. Arquitetura na Unib. Já estava na quarta namorada firme e vivia aparentemente normal.
Como cálculos não eram seu forte, procurou um estágio mais light, e acabou dentro de um sebo arquivando pilhas de livros, oito horas por dia, seis dias por semana. À noite encontrava Isabela, sua namorada, para programas simples como tomar um milk shake e ir ao cinema.
Em uma tarde como tantas as outras o sol estava escaldante e Renato não via a hora de ir à sorveteria do outro lado da rua. Quando faltavam dez minutos para fechar a loja, entra um rapaz apressado.
– Maldito – pensa enquanto abre um sorriso falso no rosto.
O garoto abre uma pilha de vinis empoeirados de uma bolsa velha e joga em cima do balcão.
– Você compra?
– Compro.
– Quanto me dá por doze discos?
– Depende de quem sejam e da qualidade de cada um.
– Eu tenho esses aqui – disse o garoto bagunçando a pilha.
Renato começou a passar um a um e desanimou logo de cara.
– Pô, Wando? Quanto você acha que eu vou pagar num disco do Wando? Quanto você pagaria? Dou três reais no máximo. Air Suplay? O que você anda ouvindo, garoto?
– Andava! Estão vendidos agora.
– Não tão cedo, se depender de mim.
– Vamos cara, tem raridades aí.
– Se para você um disco empoeirado dos Menudos é raridade...
– Tá! O do Menudos eu fico – o garoto puxou o disco começando a se arrepender de se desfazer de sua coleção.
De repente Renato se depara com um vinil do Leo Jaime. Há quanto tempo não ouvia esse nome?
– Olha, pensando bem, esse Leo Jaime aqui eu vou comprar. Mas só pago cincão.
– De jeito nenhum! Você está querendo tudo dado. Vou levar os meus discos de volta agora.
– Qual é garoto? Leo Jaime! Que outro sebo em sã consciência vai comprar um vinil desse cara?
– OK! Mas por sete reais ou nada.
– Feito.
A noite toda passou escutando o disco e relembrando alguns sucessos. Quando se cansou da voz doce de Leo foi assistir televisão. Zapeando os canais parou em um programa de namoro. Deixou uns instantes, e o cara ameaçava tirar a calça. Pela primeira vez na vida, Renato notou que não mudava o canal, pois estava realmente esperando que ele fizesse isso. Aquilo era demais. Será que estava virando gay? Não conseguia sequer imaginar essa hipótese. Não poderia estar virando gay só porque quis ver uma cueca.
Passeando no dia seguinte com sua garota pela praça, nada do que ela falava parecia interessar mais do que observar a conversa de outros casais. Tudo em sua vida lhe parecia mais interessante quando era a respeito de uma vida alheia. Nos filmes tudo era tão fácil enquanto na vida real as pessoas pareciam não se mover. Sempre agindo de um jeito idiota e cômodo.
À noite, dentro de seu Ford, olhava para os lados e fitava as pessoas. Todos de mãos dadas sem se importar se estavam sendo vigiados. Renato ainda criava coragem, agachado e protegido pelo vidro fumê. Era sua primeira vez em uma balada GLS. Não sabia nem se estava vestido adequadamente. Já se imaginava dentro de um conto erótico. Sabia que entraria ali, mas não tão cedo.
Até então aquela havia sido a noite mais gelada e cruel de todas as outras daquele ano e para não prolongar o sofrimento por mais uma hora decidiu que entraria. Nem sabia como funcionava, se precisava de identidade, de dinheiro, ou se todos os adeptos carregavam um cartãozinho identificador para lá e para cá. Se precisasse de um, desistiria. Entrar na boate tudo bem, mas improvisar um cartão dizendo "sou gay" já era demais.
O sufoco diminuiu consideravelmente quando descobriu que não precisava de dinheiro (paga-se apenas o consumo) e muito menos do cartão de homossexualidade. Lá dentro nem parecia um mundo diferente. Tinha banda, luzes, homens e mulheres, bar, mesa de sinuca. Até dava para entender porque o local era tão badalado pelos brasilienses não enrustidos.
Um homem mais velho caminhava sozinho, carregava um copo de gim-tônica nas mãos (ainda existe isso?), mas esse era muito velho. Nem valeria a pena flertar. Nem sabia se havia ido até lá para isso, mas por outro lado, se não por isso, para quê então? A verdade é que nem o próprio Renato sabia.
Uma garota loira chamou sua atenção, mas não queria ir atrás dela. Para paquerar garotas, podia muito bem ir até a pracinha da cidade. De vez em quando a garota passava por ele com outras, pareciam insinuar um threesome, mas outra vez, não foi para isso que se deslocou até lá.
Cinco copos de vodka depois as visões começaram a melhorar. Apareceu um jovem de uns vinte e cinco anos que parecia ser uma companhia legal. Pelo menos era mais novo e para Renato essa era uma grande vantagem. Sem saber muito o que fazer, começa a rir para o rapaz, que o ignora. Morto de raiva, Renato não podia acreditar que estava levando um fora de um homem. Não queria tentar outra pessoa, pois não queria se expor demais. Faria isso uma única vez, portanto aquele rapaz mais jovem teria que ser a vítima. Era ele ou nada. Aproximou-se quando ele estava distraído e leu no crachá em sua camisa de marca o nome Maurício.
– Nome de gay – pensou.
Começou a reparar que todos ali usavam crachá, mas não fazia idéia do motivo. Ninguém havia lhe falado nada a respeito de crachás quando entrou ali. Decidiu que essa seria uma boa oportunidade para puxar conversa.
– Olá Maurício, hehehehehe, por que será que todas as pessoas aqui usam crachá?
– Olá, Zé? Talvez para que as pessoas saibam que nem todos aqui são os Zé - Manés.
– É... É Renato – disse sem graça.
– Ah!
– É minha primeira vez aqui.
– Um virgem.
– Não, eu não sou virgem! É só a minha primeira vez em uma boate GLS.
– Que bom.
– As pessoas aqui são frias, né?
– Não saio encostando nelas para saber.
– É... Falou então, Maurício, vou dar mais uma rodada por aí – e saiu gritando internamente decepcionado. – Pô, eu levei um fora de um gay, de uma bicha, viadão.
Quanto mais as horas passavam, menos escolhas sobravam, e mais abafado o ar ficava. Renato foi, contra sua vontade, tentar outra pessoa. Nem escolheu por beleza dessa vez. Partiu para o primeiro cara que encontrou sozinho e foi tentar a sorte, da mesma maneira que um viciado em jogos gasta sua última moeda no fim da noite em uma máquina mais ou menos. Aproximou-se do cara, esse de perto parecia mais velho, e perguntou as horas. O cara fez um gesto com as mãos dizendo que não tinha relógio.
– Como vocês fazem aqui?
– Como assim?
– Para ficar com homens. Essa é uma boate para gays e os homens pulam fora assim que alguém do mesmo sexo se aproxima.
– Meu irmão, tem que rolar química. Você ta pensando que só porque somos gays nós vamos sair agarrando qualquer um? Um homem hétero fica com qualquer mulher que passa em seu caminho? Qualquer uma? Até as mais horrorosas? Não! Com a gente o lance é mais ou menos assim também.
– Ok! Já entendi – e saiu revoltado. – Onde é que está o Leo Jaime quando precisamos dele? Aquele cara legal, que transa cunnilingus e sexo anal, ao som de um Hully-Gully como soundtrack.
Deixou a boate para nunca mais voltar. No percurso até a porta, e da porta até seu carro, olhou para todos os rapazes que cruzaram o seu caminho, e nada. Na manhã seguinte ignorou todos os telefonemas de sua namorada e saiu pelo shopping, pela praça, pelo mercado caçando homens, tentando descobrir qual seria a melhor abordagem para a hora da conquista. Tudo em vão.
Em um momento de respeito próprio, decidiu que não correria mais atrás de ninguém. Ninguém que não fosse o Leo. Seu último suspiro no universo gay tecnológico foi um email ao cantor, de conteúdo lascivo e até mesmo desrespeitoso. A resposta veio uns quatro minutos depois. "Não interessa se eu sou gay ou não, o que interessa é que estou com um disco novo no site X. Ouve lá e diga o que você acha! Conto com a sua opinião. Abraço!"
Depois dessa Renato desistiu. Não queria mais saber como seria uma relação homossexual. Ligou imediatamente para sua namorada e combinou de encontrá-la. Sua vida voltaria aos eixos agora. E seria tudo um segredo o que (não) houve antes, pois os únicos que sabiam era o Maurício, o outro rapaz das horas, todos aqueles da boate, da pracinha, do mercado, do shopping, e o Leo. Mas não saiu ao encontro de sua garota sem antes mandar seu feedback ao Jaime, parodiando a velha canção que outrora não saía de seu toca-discos e de seu coração: "Eu tentei, naquele site, você fugiu de mim. Eu também concluí que a vida não presta: pois você não gosta de mim."

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