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sexta-feira, 16 de abril de 2010

Carta à Mãe (à moda de Kafka)

São Paulo, 16 de abril de 2010.
Queridíssima Dona Cida,

Hoje (na verdade ontem antes da meia noite) me exasperaste, na festa de formatura em Direito do teu neto José Guilherme. Superficialmente falando, você me acusou de ser o culpado (pela minha destemperança e desbocamento) da agressividade que meu filho Ariel desenvolveu contra mim.
Mas indo mais a fundo, eu não soube, como de costume, me explicar por que me exasperava, em parte por você costumeiramente me exaspera, e em parte porque existem tantos detalhes nessa exasperação que eu não poderia reuní-los no ato de falar, ainda mais num baile com altos decibéis, de modo coerente.
E se procuro responder-te por escrito, não deixará de ser de modo incompleto, porque também no ato de escrever a exasperação e suas consequências me atrapalham diante de ti e porque a grandeza do tema ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento.
Para ti a questão sempre se apresentou bem simples, pelo menos enquanto falaste dela diante de mim e, temo, talvez diante de muitos outros.
Para ti as coisas pareciam ser mais ou menos assim: trabalheste pesado durante tua vida inteira, enfrentaste o telurismo de meu pai, sua separação e morte, sacrificaste tudo por teus filhos, e sobretudo por mim, enquanto eu vivi "numa boa" por conta disso, gozei toda a liberdade de estudar o que quisesse, não precisei ter preocupações pelo meu sustento (mesmo que eu as tenha tido).
Como não consegui talvez expressar devidamente simpatia e gratidão por seus esforços, sempre me encafuei com meus amigos malucos, com minhas idéias extravagantes e modos exacerbados. Jamais fui com você à Igreja, praticamente não te visitei em suas Escolas Infantis, e bem, depois eu tinha mesmo que partir, fazer faculdades fora, ir morar bem longe de ti, me dedicar à Kátia e aos meus meninos.
Se não te trago nem uma entrada de cinema, pelos estranhos faço tudo. Se resumires teu veredito a meu respeito, te darás conta que não me acusas de nada indecoroso e mau, é verdade (excetuando-se talvez meus piores vícios como a glutonice, o uso de palavras de baixo calão e o mau ajambramento corporal e no vestir).
E tu me acusas de tal modo, como se fosse culpa minha, como se eu pudesse, como uma guinada no volante, por exemplo, conduzir tudo para outra direção, ao passo que tu não tens a menor culpa a não ser talvez pelo fato de ter sido demasiado boa comigo.
Essa tua maneira usual de ver as coisas eu só considero certa na medida em que mesmo eu acredito que tenhas a menor culpa em nosso alheamento. Mas também eu não tenho a menor culpa. Se eu pudesse te levar a reconhecê-lo, então seria possível, não uma nova vida - que para isso estamos ambos velhos demais - mas uma espécie de paz, não a cessação, mas pelo menos um abrandamento das tuas intermináveis acusações.
Curiosamente tu tens alguma noção a respeito daquilo que estou querendo dizer. Assim, por exemplo, disseste há algum tempo: "Eu sempre gostei de ti, mesmo que na aparência eu não tenha te tratado como outras mães costumam tratar seus filhos, ou mesmo como eu trato aos meus outros filhos, justamente porque não sei fingir que você não é diferente".
Naturalmente não quero dizer que me tornei o que sou apenas através da tua ascendência. Isso seria por demais exagerado. É bem possível que eu, mesmo se tivesse crescido totalmente livre da tua influência, não pudesse me tornar um ser humano na medida em que teu coração desejava. É provável que mesmo assim eu me tornasse um homem débil, hesitante, inquieto, às vezes amedrontado e outras destemido ao ponto de correr riscos desnecessários. Jamais eu seria um Alexandre ou um Luiz Egydio de Cerqueira César, nem um Cherubim Corrêa, menos ainda um Maurício Pinto, mas de todo modo um homem diferente do que sou e nós poderíamos suportar um ao outro de forma maravilhosa. Eu teria sido feliz em ter você como uma amiga, como chefe, como tia, como avó, até mesmo (embora já mais hesitante) como sogra. Mas justamente como mãe tu foste demasiado forte para mim, sobretudo porque com meus irmãos usaste uma candura, uma postura elogiosa e de sincera admiração, que tive que suportar sozinho seus golpes, e para isso eu sou fraco demais.
Compara-nos um com o outro: eu sou um Setúbal Alves Corrêa (quatrocentões de Porto Feliz e Tietê), com um certo fundo Freitas Pinto (portugueses mais recentes, caiçaras da Ilhabela e São Sebastião), com vontade de viver e de fazer projetos e conquistas dos Cerqueira César Barros Leite Sales Braga, paulista quatrocentões de Piracicaba, ou dos Bengoechea Olivera Carrijo, espanhóis brabos bandeirantes do Triângulo Mineiro e dos Goiás.
Tu, ao contrário, uma coisa única, sem os dotes intelectuais, artísticos ou oratórios de seus irmãos e pais, mas nutrida de uma vontade calada, de um cuidado em não expressar julgamentos (a não ser se forem sobre mim) e de uma determinação de caráter que poucos tiveram ou terão. Perto de você, penso que assim pensas, nunca passei de um "bon vivant" ou um adepto do "dolce far niente".
Assim tu te meteste em uma Marília ainda meio selvagem de fronteira em expansão, deixando sua nobreza santista, seu porto vetusto e as memórias de além mar, para montar a ferro e fogo uma família, sobre um homem que nunca soube de verdadade o que era isso, órfão criado por tias e vós que o papai foi.
Seja como for éramos tão diferentes e nessa diferença tão perigosos um para o outro, que se alguém por acaso quisesse calcular por antecipação como eu, o filho homem que se desenvolvia devagar, e tu, a mulher feita, se comportariam um em relação ao outro, poderia supor que tu simplesmente me esmagaria sob os pés, a ponto de não sobrar nada de mim. E isso não chegou a acontecer; o que restou vivo não pode ser calculado, mas talvez tenha acontecido algo pior. Tenho de pedir encarecidamente, no entanto, que não te esqueças de que nem de longe acredito em alguma culpa de tua parte. Tu influíste sobre mim conforme tinhas de influir, só que tens de parar de achar uma maldade especial de minha parte o fato de eu ter sucumbido a essa influência.
Eu era uma criança medrosa, como qualquer filho do meu pai tinha que ser, é claro que também fui teimoso como toda criança é, e se seus mimos da infância me estragaram um pouco, mal maior foi a dureza paterna. Mas não posso acreditar que eu tenha me mostrado difícil de ser conduzido (salvo talvez ali bem perto dos 20 anos). Uma palavra amistosa, um pegar pela mão, ou como tive que te gritar hoje, um bom cafuné, uma passada de mão nos cabelos, uma aceitação tranquila de minha forma de ser e um olhar bondoso não pudesse conseguir de mim tudo o que se queria.
No fundo és uma mulher boa e branda, mas nem toda criança tem a resistência e o destemor de procurar tanto quanto for necessário para encontrar a bondade.
E enfim chegamos a essa situação em que me encontro diante de ti. Tenho a impressão de que se eu me chamasse Bill Gates, te desgostariam as práticas empresariais da Microsoft. Ou se eu fosse o Serra, lhe desagradaria a linha do PSDB, suas mazelas. Se um prêmio Nobel me tocasse, diante de seus olhos ele seria ignóbil.
Nem mesmo a tua confiança nos outros (aqueles que não te são muito próximos, pois preferes não ter as pessoas muito perto) é tão grande quanto a minha autodesconfiança, para a qual me educaste. Uma certa legitimidade para a objeção, que além do mais contribui com algo novo para a caracterização do nosso relacionamento, eu não posso negar. Naturalmente as coisas não se encaixam tão bem na realidade como nas provas contidas na minha carta, pois a vida é mais do que um jogo de paciência; mas com a correção que resulta dessa réplica, uma correção que não posso nem quero discutir nos detalhes, alcançou-se a meu ver algo tão aproximado da verdade, que isso pode nos tranquilizar um pouco e tornar a vida e a morte mais fáceis para ambos.
Espero que na tua viagem às serras do Sul possas esquecer do mal que tenho mais do que ninguém te causado. Aproveite!
Um beijo do Beto

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