NOTAS DE LEITURA DA CARTA DO SÊNECA PARA SUA MÃE HÉLVIA
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Este texto não são notas de leitura linear da Carta do Sêneca para sua mãe Hélvia, são apenas notas e comentários sobre aspectos que chamaram minha atenção. O pensador Lúcio Aneu Sêneca, no século I a.C., escreveu uma carta endereçada a sua mãe quando se encontrava no exílio. Esta carta é conhecida hoje com o título: Consolação a minha mãe Hélvia. No preâmbulo ele lista suas intenções: primeiro, consolar sua mãe da dor da ausência, segundo, tentar pôr limites as lágrimas de sua mãe aflita pelo seu exílio e, terceiro, mostrar que não estava sentindo a dor da distância de sua terra natal, numa magnifica definição de exílio. Ainda nesta parte da carta, Sêneca, alerta para os riscos de mexer nas feridas abertas, mas diz que será necessário, pois só assim podemos curar, mesmo correndo o risco de errar na dose. Sabemos que oferecer um remédio inadequado ao invés de curar pode provocar maiores danos. Ele escreveu: “nas doenças nada há mais danoso que um remédio intempestivo” (p.361). Além disso, continua nosso pensador, “toda dor que passa os limites do suportável tira necessariamente a faculdade de escolher as palavras, se amiúde sufoca também a voz” (p. 361-2). A dor sufoca a vida, por isso é necessário eliminar a dor para viver. O que devemos fazer para eliminar a dor? A proposta do pensador Sêneca é um tipo de autossugestão, lembrar-se das dores vividas e superadas e com isso relativizar a dor atual, porém, ele sabe que ideias não elimina a dor… Para eliminar a dor só outra maior. Só um afeto contrário e maior supera outro afeto menor. [Essa visão sobre os afetos encontra-se de forma primorosa na Ética do Spinoza, produzida no século XVII]. Ele lembra também o ditado popular que diz: “só uma paixão maior poder apagar a outra”. Por isso, Sêneca confia na força do afeto frente a dor, na lembrança das dores superadas para superar as dores presenres. Ele acredita que o afeto de sua mãe por ele favorece todo o processo. Assim, sua estratégia é expor as dores passadas e esquecidas por sua mãe e desta forma produzir o antídoto contra as dores presentes. De acordo com Sêneca, os males curam-se geralmente com os contrários, por isso, é necessário observar e reabrir todas as chagas já cicatrizadas vividas e sofridas no passado. Mas, isso pode parecer uma estratégia sádica, falar das dores passadas não alivia a dor presente, provoca mais dor ainda. Entretanto, a pedagogia do filósofo pretende na verdade é revelar a força de sua mãe e assim mostrar como ela conseguiu superar tantas adversidades. O ponto mais importante é que com isso ele deseja reconhecer a força de sua mãe e não mostrar as fraquezas, afirmando que ela não é uma mulher dada as lamúrias e gemidos (manifestações típicas da dor feminina, traços da mentalidade machista de sua epoca). Porém, esta proposta de tratamento (consolação) busca vencer a dor vivida e não iludir sua mãe. A primeira dose do remédio esta na afirmação peremptória do próprio filho afirmando que não tem mau algum afligindo sua alma, coisas que toda mãe deseja ouvir de seu filho. Depois desta declaração, ele segue afirmando que vai demonstrar que as coisas que ela pensa aniquilar sua existência não são intoleráveis; e assegura que sua mãe não deve acreditar nas opiniões dos outros, pois, são falsas opiniões. E reafirmar sua posição escreveu: “Declaro-te que não sou em nada mísero; direi mais, para que tenhas maior certeza: nunca poderei ser mísero” (p.364). Sua condição de exilado não o reduziu a um ser miserável como diziam os outros para sua mãe. E neste momento entramos na demonstração da primeira tese estoica de Sêneca: o naturalismo. Ele escreveu: “a natureza nos gerou em bom estado e nele estaríamos se dela não nos afastássemos” (p.364), assim, nunca seremos ser miseráveis quando, e somente quando, vivemos de forma natural. Em outras palavras, ficar ligada aos desejos naturais e necessários é condição sine qua non para a vida feliz e sem miséria. A natureza nos fez de tal forma que “não precisássemos de muitas coisas para viver prosperamente: cada um pode por si tornar-se feliz” (p.365). A sabedoria é esforçar-se “sempre para pôr em si cada bem seu, para obter de si toda a sua alegria”, quando agimos assim pouca importância tem as coisas. Manter-se numa vida natural simples, leve e ser feliz, como os animais que em seu habitat vivem da natureza felizes e tranquilos. Quanto mais artificial a vida mais preocupações teremos e as perturbações nos atravessam violentamente, e com isso mais dores e sofrimentos. Preocupação  e perturbação são agentes de angústia e dores na alma. Além do mais, ninguém consegue ser feliz sem aceitar sua condição natural, e muito menos lutando contra sua própria natureza. A simplicidade é fator primaria de alegria e quanto mais sofisticada a vida, quanto mais ricos, nos tornamos mais miseráveis. Lutando contra a natureza, agredindo a ordem natural. Violentando o corpo com coisas desnecessárias. Consumindo coisas que não são nem naturais e muito menos necessárias. Este caminhar para uma vida natural e sem perturbação pode acontecer seguindo os passos dos sábios, pois eles nos aconselham a ficarmos atentos aos ataques e a qualquer assalto das desgraças naturais ou sociais muito antes que se abatam  sobre nós. Olhar com atenção os sinais do tempo. Todo mundo que tem um pouco de atenção sabem quais são os sinais de uma tempestade. Basta ter a mesma atenção para percebermos os sinais das tempestades que estão se formando sobre nossas vidas, assim podemos suavizar e até nos proteger destes ataques ou assaltos sobre nossa existência. Sêneca lembra que “as desventuras são graves para aqueles a quem [as coisas] chegam inesperadamente; facilmente as suportam quem sempre as esperam. Assim, também o ataque de um exército inimigo dispersa os soldados tomados de surpresa; mas se preparados para guerra antes da guerra, ordenados e prontos repelem a primeira investida, que é a mais furiosa” (p.365). Em outras palavras, “é preciso estar atentos e fortes, não temos tempo de temer a morte”, nos diz o poeta. Além disso, a atenção nos garante a liberdade, como se diz o preço da liberdade é a eterna vigilância. Basta ficar atento para não ser tomado de assalto pelas adversidades. Além de seguir as orientações dos sábios, o pensador afirma que não devemos nunca nos entregar aos ventos da fortuna [sorte] mesmos quando pareça favorável, pois eles podem mudar repentinamente. A sorte é flutuante. É preciso também, dá mesmo forma, não se apegar as riquezas, aos cargos de poder ou prestígios, e coloca-los em uma distância tal que não se aborreça caso lhe tirem e nem se sinta arrancado, violentado. Esta distância afetiva é para se proteger, pois quem se agarra a seu presente de riqueza e fama como as coisas das quais se tem perpétua propriedade “jazem prostrados e aflitos, quando os deleites falsos e fugazes abandonam sua alma vã e pueril, que ignora qualquer prazer real. Ao contrário, quem na prosperidade não se orgulhou, não se abala se as coisas mudam” (p.366).
Depois destas orientações, entramos no ponto forte da carta, pois, sua principal motivação para escrevê-la foi para consolar sua mãe por causa de seu exílio. É neste momento da carta que Sêneca produz uma resposta a sua grande questão: o que é o exílio? O primeiro passo fundamental é relativizar a ideia comum e suavizar respectivamente as afecções produzidas por esta punição, pois quando pensamos no exílio sentimos sempre uma profunda dor e tristeza… assim é necessário compreender o exílio para além da visão comum. Neste momento, Sêneca tenta de todas as formas mostrar outra visão sobre o exílio, ele escreveu que “sem dar importância ao critério da maioria, que se deixa transportar pela superficialidade e pela opinião corrente, vamos ver o que é o exílio”. De forma direta ele responde a pergunta o que é o exílio da seguinte forma: Exílio “é, na substância, uma mudança de lugar” (p.365). Simples assim. Exílio é mudança, mas, explica e se justifica, “para que não pareça que eu esteja atenuando sua aridez e tirando o que tem de pior, direi ainda os aborrecimentos que derivam dessa mudança: pobreza, desonra, desprezo… Com esses lutarei mais tarde… Quero limitar-me a examinar qual é a dor proveniente da pura e simples mudança de lugar” (p.365).
Para relativizar, seu primeiro argumento, busca demostrar que todas as cidades são habitadas por multidão diversificada. Não existe no mundo uma cidade onde não resida uma grande parte de estrangeiros. Então, ele questiona, até que ponto viver longe da pátria é intolerável? Além dessa constatação, Sêneca lembra que “há também quem afirme existir nas almas humanas certa inclinação natural a mudar de sede e transferir a sua própria residência; pois que o homem recebeu da natureza um intelecto móvel e inquieto, que nunca para num lugar, mas anda de um lado e do outro, levando seus próprios pensamentos para qualquer coisa, ansioso de sossego e ávido de novidade” (p.366). Por essa coisa natural, ele fecha seu argumento dizendo, “a volúvel raça humana espalhou-se por todos os caminhos do mundo, mesmo se desagradáveis e desconhecidos” (p.367). Ele reconhece no homem um ser aventureiro, nômade e inquieto, por sorte quase ninguém permanece no lugar onde nasceu. Desta forma, o exílio não é uma punição para o homem esclarecido. Ele sentencia: “Não considero os outros inconvenientes, pois, no exílio somos seguidos em toda parte pelas coisas mais belas: a natureza comum a todos e a virtude individual” (p.369). Por isso, “alegria e de cabeça erguida iremos com passo intrépido aonde quer a sorte nos leve, percorreremos qualquer terra: entre os confins do mundo não há exílio; porque nada daquilo que está dentro dos confins do mundo é estranho ao homem” (p.369-70). Assim, Sêneca conclui que, “para o sábio todo lugar é pátria” (p.371). Este é outra visão estoica do mundo. O estoicismo advoga que o filósofo é uma cidadão do mundo, esta visão é diametralmente oposta da perspectiva de Albert Camus na obra O Estrangeiro. Para o pensador franco-argelino, nesta obra, todos os lugares nos são estranhos, o homem é um estrangeiro mesmo em sua pátria. A inversão total da visão estóica.
Referência:
SÊNECA, Lúcio Aneu. CONSOLAÇÃO A MINHA MÃE HÉLVIA. Tradução Giulio Davide Leoni. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1985.