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segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A Guerrilha do Araguaia vista pela direita

Pantomima cômica (se não fosse trágica) em 7 atos

1o Ato
Abre o pano. Setembro de 1974, estou voando de Marília a Alto Araguaia, Mato Grosso, com o meu pai e o comandante Onésimo. Emoção pura de menino pré-adolescente, tinha eu dez anos, na sua primeira viagem de avião (um bimotor Cessna de 6 lugares). Sobrevoamos a imensidão do cerrado e meu pai indicando montes e lagos que secavam. Em algum ponto perto do Rio Ariranha o velho gritou: É aqui. Sabia de mapas o Xandico. Demos voltas e voltas, reconhecemos o terreno. Eu era só inocência.
2o Ato
O aeroporto de Alto Araguaia era uma pista de areia seca, caliça, esburacada, quase capotamos ao aterrissar. Compra providencial de queijo cabacinha numa pousada, doce de tacho (aquilo tudo faria muito sucesso com a família e amigos da escola na volta), uma velha que podia ser a Cora Coralina fazendo num tear primevo mais um cobertor para aquecer (quando seria preciso um cobertor naquele trópico calorento?) os viajantes dali. Canícula. Almoço de feijão grosso e todas tropeirices numa casa velha transformada em restaurante sobre uma curva do Rio Araguaia. Moleques pulavam de cabeça metros a fio, antes de furarem o espelho cristalino das águas. Devia estar maravilhosa a nadada, mas meu pai não era dado a nadadas em horas sérias. Ia depois do almoço ao cartório, buscar uma escritura.
3º Ato
O cartório rescende a mofo de papel velho. Chá de cadeira, uma pasta debaixo do suvaco do velho. Bora prá Marília. Outra aventura de decolar e ver tudo de cima. Homem de coragem, Onésimo contou todos seus pousos forçados e panes de motor. Chegamos bem. Muito depois entendi que a escritura era de uma viúva morta. Os herdeiros existiriam? De algum jeito o governo ia transformar a terra em “devoluta”. Deve ter tido dedo do parente do Exército que atuava no Dops na "jogada". Mas meu pai que tratasse de tirar os grileiros de lá...
4o Ato
A sociedade na terra a ser "regrilada", posto que grilada dos grileiros, era um exército de Bracaleone perverso. Mario Buonomo, um fascista mafioso da Bota, contrabandista de artigos de luxo (fachada) e armas (a vero). Dr. Monteiro, um delegado de polícia civil, machista, direitista, violento (para mim era simpaticíssimo e até queria me casar com a filha dele!), ótimo investigador e, à boca pequena, torturador contumaz. Deve estar curtindo por aí uma aposentadoria de ouro, ou quiçá carcomido pelo rancor e remorso? E o “bobo” do velho, descapitalizado, entrando com o serviço sujo. Descendente de "quatrocentões" sem nobreza, eterno sonhador de garimpos e pecuárias extensivas, bandeirante falido, sem ouro, agora sonhava seu gadão sem fim. Encheram uma caminhonete Ford, quadrada e amarelo gema, com um arsenal de grosso calibre, munição à mancheia e voltaram, semanas depois, por terra ao Araguaia.
5o Ato
A operação de desalojamento dos grileiros consistia em fazer a campana de longe. Sabiam onde as casas e onde as roças, as frentes de trabalho dos homens, espionavam os hábitos, coisas do delegado. Quando seguros que os homens estavam longe na lida, iam até as casas, só mulheres e os barrigudinhos, um velho ou outra velha. Matavam os cachorros que iam latir de longe prá caminhonete. Meu pai e o delegado, bons atiradores, o italiano quase cego. Aterrorizavam as famílias. Depois de chegarem nas choças das mulheres quase mortas de medo, furavam a bala todas as panelas, jarros, cuias, utensílios que pudessem ser usados para pegar água na fonte ou cozinhar. Recolhiam sal, víveres, fósforos, tudo que pudesse os prender ali. Era para fugirem amanhã, com fome, desesperados, irem se fuder na cidade, léguas tiranas dali. E avisavam que “na próxima não ia ser só o cachorro não”.
6º Ato
Um ou outro grileiro que resistiu foi capturado na lida, posto a derrubar casebre e cercas sob a tutela de carabinas. Fizeram uma ou três viagens dessa? Mataram ou feriram alguém? Sei que a empreitada deu em nada, só deixou meu pai mais pobre. Faltou "ajuda" do Governo, da Oban, sei lá. O Genoíno já tinha sido preso, os "paulista" mortos ou dispersos, Major Curió reinava com os óculos "Garrafa Azul" do Médici.
7º Ato
38 anos depois. Escrevo para pedir perdão, em nome do pai regenerado e morto, “que não sabia o que fazia”, pelo medo e danos de toda sorte impingidos aos grileiros e suas famílias. Baixa o pano.

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