São Paulo é um país compacto. Os edifícios acumulam-se como se precisassem de garantir segurarem-se uns nos outros com um braço esticado. As ruas ficam irregulares, serpentes emaranhadas no dorso das quais gente e automóveis passam num equilíbrio esperto. São Paulo é para espertos.
As serpentes são tão sedutoras quanto terminais, e há uma língua bífida procurando alimento incansável. Atarefada. Adoro a portuguesa língua bífida do Brasil. Isso de ser lusa e índia, de ser paisagem campestre e construção. O português do Brasil é uma babélica solução de sucesso.
Os taxistas perguntam-me como fui arrumar de falar tão bonito. Digo que estou num outro Portugal. Um senhor respondeu-me que São Paulo não é nada, nem Portugal nem Brasil. É um problema sozinho. E eu perguntei se não seria uma solução sozinha. Ele achou que sim. Só por existir solução se podia formular o problema. Rimos.
Umas moças passavam para o caríssimo shopping Iguatemi. Estavam de pernas abundantes à mostra. Ele comentou: perninha de asfalto, trabalhada meticulosamente a salto alto. As melhores pernas do mundo. Rimos. A nova garota da nova Ipanema. Sem praia. Só praça e avenida. Um amor em cada segundo. Todos os homens são candidatos. Achei demasiado generoso. Mas quero acreditar.
Pode levar anos a criar conforto. Quando o código bem encriptado da metrópole começa a ser quebrado, São Paulo é uma força bruta, uma central eléctrica que opera no coração. Ficamos com o coração predial, quer dizer, feito de assoalhadas, andares, janelas e terraços, vistas, esconsos de subir e descer, vãos, síndicos que dizem sim, sorriem. Montes de gente. Ficamos com montes de gente no coração. Como um verdadeiro condomínio.
O coração arranha os céus. É verdade que em cidade gigante o coração também sabe crescer. Ele pode bem arranhar os céus.
Domingo cedo, o minhocão voador está fechado ao trânsito, a folia da saúde põe gente a correr, andando, passeando os cachorros, paquerando num certo flagrante descomplicado. Num país compacto não dá para complicar o desnecessário. As pessoas ficam satisfeitas com a normalidade. Tudo o resto é pura liberdade de expressão e íntima procura da felicidade. Gostamos todos de olhar e ser olhados. No minhocão, domingo de manhã, não há gente feia. Somos todos desportistas e lindos. Passamos lindos ao nível do segundo ou terceiro piso dos prédios. Somos tão exuberantes quanto copas de árvores. Poderíamos acolher pássaros, não seria nada de estranho. Sentimos que qualquer coisa pode acontecer. Qualquer coisa boa, quero dizer.
Há uma mulher a vender água de coco bem fria. Diz umas palavras, recebe dois reais ou três. Acerta com a lâmina no coco e tem todos os dedos intactos. Perguntei se algum dia deu medo. Ela diz que não. No início dava raiva, por ser lenta a servir os clientes. O tempo dá pressa ao trabalho e dá lentidão ao amor.
Fiquei a matutar nessa ideia. O tempo dá pressa ao trabalho e lentidão ao amor.
Respondi-lhe que ia anunciar a alguns homens passando que ela estava ali disponível. Ela gritou. Disponível mas em segredo, que o seu marido ainda abria coco mais certinho do que ela. Para lhe abrir a cabeça, ele precisava só de um dedo. Quando a cumprimentei com um até logo, ela murmurou: mas diz, sim, baixinho. Se for de valer a pena, a gente morre por amor.
São Paulo é um país assim. De valer a pena. Contendo tudo, os perigos enrolados nas coisas boas, as aventuras, as esperanças, a inexistência da fealdade, a sensação intensa de estarmos vivos, de termos sempre alguém. Em São Paulo temos sempre alguém. Conta-se que há maluco para tudo. Há, claramente, uma maluca para nós. Que maravilha, saber que somos sempre alguém para alguém.
Só em lugar pequeno é que há quem fique proscrito. Lugar grande absorve. Todas as pessoas renascem ao virar da esquina. Todas as pessoas renascem ao descer de um transporte público. A oportunidade de voltar a ser feliz está na base de cada instante.
Em São Paulo, todas as pessoas renascem ao virar da esquina. Isso faz-me tão bem. Gosto por de mais.
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